«Empresários se apropriaram da liberdade de imprensa para ter liberdade de empresa»

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Debate sobre a democratizaçí£o da comunicaçí£o reuniu mais de trezentos representantes de rádios comunitárias, pesquisadores, autoridades e estudantes, no Encontro Latino-Americano de Comunicaçí£o Popular e Bem Viver. Adalid Contreras, secretário da Comunidade Andina, que reúne Peru, Colí´mbia, Equador e Bolí­via criticou açí£o de grandes empresas privadas. «Os empresários se apropriaram da liberdade de imprensa para ter liberdade de empresa». O artigo é de Ana Maria Passos, direto de Quito.

Ana Maria Passos – Quito

Quito – O debate sobre a democratizaçí£o da comunicaçí£o, que era uma bandeira dos anos 80, voltou í  tona na América Latina com a crise do modelo neoliberal e a conquista de governos progressistas em vários paí­ses. Em quase todo o continente está sendo discutido, ou já foi aprovado, um novo marco regulatório em busca de mais pluralidade e igualdade de acesso í  comunicaçí£o.

Este tema atravessou os debates entre mais de trezentos representantes de rádios comunitárias, pesquisadores, autoridades e estudantes que participaram do Encontro Latino-Americano de Comunicaçí£o Popular e Bem Viver, de quarta a sexta-feira, em Quito, no Equador, para comemorar os quarenta anos da Associaçí£o Latino-Americana de Educaçí£o Radiofí´nica, a Aler.

«Doze anos atrás no continente ní£o estávamos falando desse assunto, estava em nossas preocupaçíµes sempre, mas ní£o havia essa possibilidade. Creio que se abriu uma brecha e que essa brecha já ní£o tem volta atrás», diz a secretaria executiva da Aler, Nelsy Lizarazo. Na opinií£o de Lizarazo, as condiçíµes polí­ticas sí£o mais favoráveis agora, com o fortalecimento da democracia, apesar de algumas ameaças, como os golpes de Estado em Honduras e no Paraguai, mais recentemente. «Temos mais possibilidades de participar, de mobilizar e de entrar em diálogo. Também creio que os movimentos sociais e as organizaçíµes estí£o vivendo um novo tempo, reinventando-se, adaptando-se ao momento e em direçí£o ao futuro, entí£o creio que esse é um fator que também joga muito a favor de posicionar a comunicaçí£o como um direito».

Argentina – «nova lei traz avanço, mas ní£o é suficiente para mudar a realidade»

Bolí­via e Equador já aprovaram em suas Constituiçíµes que a comunicaçí£o é um direito de todo cidadí£o e que a liberdade de expressí£o ní£o é isenta de responsabilidades.

Mas é a Argentina que tíªm a legislaçí£o mais avançada do continente. A nova Lei de Meios Audiovisuais, aprovada em 2009, garante 33 por cento das freqí¼íªncias de rádio e televisí£o para emissoras sem fins lucrativos. As comunidades indí­genas reconhecidas pelo governo também tíªm direito aos canais, fora desse percentual. A lei argentina determina ainda o fim do monopólio e oligopólio nos meios de comunicaçí£o e da propriedade cruzada. A cobertura dos canais tem limite, ní£o pode alcançar mais de 35 por cento da populaçí£o. Um dos desafios é o financiamento e a sustentabilidade dos veí­culos ní£o comerciais. O fundo que deveria garantir recursos para esses canais ainda ní£o começou a funcionar, embora haja algumas iniciativas pontuais para investimentos em capacitaçí£o e compra de equipamentos, segundo o presidente do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco), Nestor Busso. «A lei é como uma porta que se abre. A lei propíµe um novo modelo, mas ní£o muda a realidade».

O maior entrave para fazer valer a lei sí£o os grandes grupos privados, como o Clarin, que entrou na justiça e conseguiu uma medida cautelar suspendendo a aplicaçí£o de alguns artigos. A Suprema Corte marcou como data final para julgar a açí£o o dia sete de dezembro.

Para Busso, «cada vez mais os grandes meios de comunicaçí£o na América Latina sí£o a expressí£o do poder econí´mico concentrado e, na medida em que os governos democráticos querem avançar em direitos cidadí£os e pí´r limites ao poder econí´mico, ocorre um enfrentamento entre o poder mediático e o poder polí­tico». Esse confronto, afirma Busso, é mais evidente em alguns paí­ses como Venezuela, Equador e Bolí­via, mas também se dá no Brasil e na Argentina. «O poder econí´mico e suas corporaçíµes sí£o o principal partido de oposiçí£o. Ní£o há partidos com idéias, com outro projeto polí­tico. Os que enfrentam as polí­ticas do governo nacional sí£o as corporaçíµes mediáticas».

Por isso o tema é considerado chave para assegurar a governabilidade democrática. A vantagem na Argentina é que o assunto já ganhou as ruas. «Todo mundo opina sobre os meios de comunicaçí£o. E poucos ainda acreditam naquilo, bom saiu na televisí£o é verdade, saiu no diário é verdade. Cresceu um sentido crí­tico em relaçí£o aos meios de comunicaçí£o».

Busso acredita que ní£o é possivel democratizar a sociedade se apenas poucas empresas definem os temas que devem ser debatidos ou ní£o. «E, de fato, amplos setores da nossa sociedade, particularmente os mais pobres, estí£o invisí­veis, estí£o silenciados, entí£o há necessidade de uma açí£o dos estados para intervir em matéria de comunicaçí£o e para que todos os setores possam expressar-se. í‰ um tema chave, tanto em ní­vel nacional, como internacional».

A proposta de Busso é levar o debate aos organismos de integraçí£o, como Mercosul, Unasul, Alba e Comunidade Andina.

Comunidade Andina pede nova ordem da comunicaçí£o

O Secretário da Comunidade Andina (CAN), que reúne Peru, Colí´mbia, Equador e Bolí­via, Adalid Contreras, diz que a entidade ní£o está encarregada desse assunto, mas se preocupa com a crescente confrontaçí£o entre meios de empresários privados e poderes estatais. «Ní£o é casual, porque as estruturas de poder estí£o instaladas nesses meios privados. Muitos meios privados estí£o passando do ponto, já ní£o há mais ética nos informativos». Para Contreras, está instalado nesses meios «o desprezo pelo popular». E os erros sempre ficam impunes. «A auto-regulaçí£o dos jornalistas ní£o funciona. Ní£o se sanciona, ní£o se castiga. Os empresários se apropriaram da liberdade de imprensa para ter liberdade de empresa». Neste sentido, o secretário opina que o discurso em nome da liberdade de expressí£o «está freando aspiraçíµes de décadas quanto ao direito í  comunicaçí£o», que seria muito mais amplo. «Eu voltaria a pí´r como bandeira a necessidade de uma nova ordem mundial da informaçí£o e da comunicaçí£o».

Equador – Movimentos sociais se unem para tentar aprovar a Lei de Comunicaçí£o

Os movimentos sociais do Equador decidiram lançaram durante o encontro das rádios comunitárias uma nova estratégia para avançar na democratizaçí£o da comunicaçí£o. Eles acreditam que o primeiro passo é aprovar a Lei de Comunicaçí£o, que está em debate na Assembléia Nacional há tríªs anos. O texto só depende de uma segunda e última votaçí£o no plenário. A proposta divide o espectro radioelétrico em 33 por cento para canais privados, 33 por cento para públicos e 34 por cento para comunitários, que teriam financiamento e isençí£o de impostos para se equipar. A lei também proí­be monopólio e oligopólio no setor, garante igualdade de acesso í  publicidade oficial e cria o conselho de regulaçí£o e desenvolvimento da comunicaçí£o. O órgí£o seria composto por seis pessoas, entre representantes do governo, proví­ncias, conselhos de igualdade, universidades, comunidades indí­genas e afroequatorianas e outro dos movimentos sociais. Com funcí£o administrativa, o Conselho teria a palavra final sobre a concessí£o de freqí¼íªncias e receberia denúncias sobre violaçíµes de direitos estabelecidos pela lei. Os meios privados chamam o projeto de ‘lei da mordaça’, o governo já disse que apóia a proposta, mas ní£o tem votos suficientes para a aprovaçí£o.

As rádios comunitárias e outros movimentos sociais equatorianos decidiram se unir para pressionar os parlamentares daqui pra frente e fazer oficinas nas comunidades onde atuam com o fim de conscientizar a populaçí£o sobre a importí¢ncia da mudança de regras na comunicaçí£o.

Eduardo Guerreiro, diretor da rádio Latacunga, avalia que «esse tema foi conversado até agora mais no interior das organizaçíµes e ní£o incidiu na sociedade como um todo. A sociedade civil ní£o víª ainda a importí¢ncia da lei de comunicaçí£o. Os meios hegemí´nicos, os meios comerciais, que estí£o unidos a determinados grupos de poder econí´mico e também polí­tico, foram manejando a opinií£o pública». O radialista diz que os meios comunitários pretendem pí´r o tema em debate «e apresentar outra realidade, outro olhar sobre o que é a lei de comunicaçí£o».

Brasil na campanha pela liberdade de expressí£o de todos e de todas

Essa é a mesma preocupaçí£o do Fórum Nacional pela Democratizaçí£o da Comunicaçí£o (FNDC) no Brasil. A coordenadora do FNDC, Rosane Bertotti, diz que as pessoas ainda ní£o consideram o direito í  comunicaçí£o igual ao de ter acesso í  educaçí£o e í  saúde, por isso ní£o entram na luta por ele. «A comunicaçí£o é encarada como uma forma de levar uma informaçí£o, levar um entretenimento pra uma camada da sociedade e ní£o como direito».

Mudar essa visí£o é o desafio dos que querem transformar a estrutura de comunicaçí£o do paí­s.

A legislaçí£o em vigor é de 1962, anterior í  ditadura. A Constituiçí£o de 88 trouxe avanços, como a proibiçí£o do monopólio e da concessí£o de rádio e televisí£o para quem tem cargo público, mas como ní£o foi feita a regulamentaçí£o a regra ní£o é cumprida. «Nós sabemos que as concessíµes no Brasil, em torno de 30 por cento, sí£o ligadas a polí­ticos».

O FNDC defende a necessidade de uma nova lei que garanta a liberdade de expressí£o num sentido amplo. A proposta deve garantir pluralidade, novas formas de concessí£o, fortalecer o sistema público, assim como os meios comunitários e educativos, além de considerar os avanços tecnológicos.

Para divulgar esses princí­pios, o Fórum lançou a campanha «Para expressar a liberdade, uma nova lei para um novo tempo»- de convergíªncia tecnológica e de fortalecimento da democracia.

«O Brasil passou e continua passando por um processo diferente do último perí­odo, o governo do presidente Lula avançou em vários aspectos no que diz respeito í  democracia, í  economia, í  participaçí£o». Ní£o faz sentido, na opinií£o de Rosane, uma lei de comunicaçí£o que ainda permite conteúdos machistas nos meios de comunicaçí£o. «A cada dia milhares de mulheres sí£o assassinadas e violentadas e assistimos em televisí£o aberta a programas que incitam a violíªncia contra as mulheres, contra as crianças. Nós ní£o podemos mais nesse novo tempo de democracia ver programas que incitam í  homofobia, ao racismo. Nós vivemos num paí­s plural e precisamos respeitar a diversidade de raças, de gíªnero e também a diversidade sexual».

Regular, explica Rosane, é bem diferente de censurar os meios de comunicaçí£o. «Nós defendemos a liberdade de imprensa. Mas ní£o pode ser uma liberdade de imprensa que dá o direito a quem detém o meio de falar o que quer, o que pensa, sem que isso nem sempre seja verdade. E vocíª ní£o tem nem sequer o direito de resposta no Brasil. Quando vocíª garante a liberdade de expressí£o, vocíª está garantindo a liberdade de imprensa e uma coisa mais ampla, que é o direito de todos se expressarem, dos homens, das mulheres, dos negros, dos í­ndios, do setor empresarial, do setor do trabalho, dos movimentos sociais, de quem é governo, porque é assim que é a sociedade brasileira».

Graciela Machuca

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